Boate Kiss: como está a segurança contra incêndio no Brasil

Após 8 anos do incêndio trágico que matou 242 pessoas, saiba o que mudou nas normas de segurança

Por Fernanda Ferreira

Em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, aconteceu um incêndio em uma boate que matou 242 pessoas e feriu outras 636. A tragédia foi marcada por uma série de falhas, muitas delas de segurança, que poderiam ser previstas e evitadas com medidas de proteção. Para falar mais sobre segurança contra incêndio no Brasil e detalhes sobre o caso da boate Kiss, conversamos com Marcelo Valle, especialista em prevenção e combate a incêndio, diretor da Mvalle Gestão de Segurança Empresarial e consultor da Performancelab.

Revista Segurança Eletrônica: Poderia compartilhar conosco a sua trajetória profissional e atuação no mercado de prevenção e combate a incêndio?

Marcelo Valle: Sou militar de origem, onde cursei o Instituto Militar de Engenharia (IME). Mas, foi na carreira civil que minha experiência em segurança empresarial se consolidou. Depois de alguns anos na área de informática, comecei a trabalhar no Grupo Engeseg, empresa de prestação de serviço de segurança, atuando em diversas áreas tais como operações, planejamento e riscos, treinamento, qualidade e comercial. Foi quando busquei a formação em gestão de segurança empresarial e, depois, especializações como bombeiro civil industrial, gestão de emergências e desastres e gestão de segurança contra incêndio.

Tive o privilégio de desenvolver a divisão de bombeiros civis do Grupo, conquistando contratos com algumas empresas automotivas do país, como General Motors, Volkswagen, Ford, Mercedes-Benz, Volvo, Nissan, Hyundai Motor, Chery e Peugeot Citröen. Depois, após a aquisição da Engeseg pelo Grupo GPS, atuei corporativamente desenvolvendo ainda mais negócios, chegando a 1.200 bombeiros civis empregados em 16 estados brasileiros, e adquirindo experiência com clientes em todos os setores da economia nacional.

Após 22 anos atuando em prestadoras de serviços, fundei a empresa Mvalle Gestão de Segurança Empresarial, na qual administro com o propósito de apoiar as companhias que desejam se desenvolver e especializar no mercado de bombeiros civis. Também, produzo e publico conteúdos sobre gestão de segurança contra incêndio e gestão de riscos e emergências, o que me levou a consolidar uma parceria com a Performancelab, para a produção do Firelab.

Para o futuro, estou finalizando um curso em uma escola inglesa, para poder me filiar ao Institute of Fire Safety Managers (IFSM) e introduzir no Brasil novos conceitos de gestão de segurança contra incêndio que são aplicados lá fora.

Revista Segurança Eletrônica: Qual é a diferença da prevenção de incêndio do Brasil x Estados Unidos?

Marcelo Valle: Trabalhei por muito tempo com montadoras automotivas, cuja fundamentação em segurança contra incêndio e gestão de emergências é baseada nos padrões NFPA (National Fire Administration), na FEMA (Agência Federal de Gestão de Emergências) e em seguradoras internacionais. Por isso, toda a minha formação é baseada em conceitos americanos e europeus, que tenho buscado trazer para a segurança contra incêndio no Brasil, nas empresas em que passo.

A diferença é que nos Estados Unidos, assim como em países europeus, ao implementar medidas de proteção, você tem que fazer avaliações de riscos e utilizar softwares de simulação de incêndio, fumaça e evacuação para poder estabelecer as medidas necessárias. Por exemplo, na Europa utilizam-se métodos com base nos conceitos de Gretener, para avaliar riscos.

Já no Brasil, as medidas são implantadas somente se estiverem dispostas em regulamentações dos bombeiros militares. Como consequência o empresário brasileiro decide não fazer o que não está previsto na lei, deixando de lado a prevenção do risco e a sua responsabilidade sobre isso, e foi justamente o que aconteceu na boate Kiss.

A segurança contra incêndio possui dois braços: a engenharia e a gestão. Entretanto, no Brasil vemos desenvolvida a de engenharia de segurança contra incêndio, justamente porque não temos a parte de avaliação de risco, consequentemente não temos gestão. Enquanto, por exemplo, na Inglaterra, Espanha e Estados Unidos existem cursos de graduação e pós-graduação em gestão de segurança contra incêndio, no Brasil é muito difícil encontrar um curso e os que existem, focados em engenharia, não atendem as necessidades e princípios.

Para se ter uma ideia, seguindo a cultura que temos hoje no Brasil, mesmo adotando as medidas impostas por normas e regulamentações, nós contamos com 300 mil incêndios registrados por anos no país, sendo que 78 mil deles ocorrem em edificações, produzindo uma média de 4 mortes por dia, sendo ao menos uma criança, ou seja, em torno de 1.400 mortes por ano.

Em termos de prejuízo, essa referência nós não temos no Brasil, mas segundo a National Fire Protection Association (NFPA), uma organização global dedicada a estudos e definições de padrões para mitigar perdas devido a incêndios e riscos relacionados, um dos seus estudos indica um prejuízo em torno de US$ 329 por metro quadrado associado a incêndio estrutural de natureza grave. Esses prejuízos também ocorrem no nosso país em termos de perda pessoal, financeira e impactos ao meio ambiente, devido a produção de monóxido de carbono, gás carbônico, gases tóxicos, poluição e contaminação da água utilizada no combate.

Revista Segurança Eletrônica: Você citou a boate Kiss e esse assunto voltou à tona nos noticiários com o julgamento dos acusados pelo incêndio ocorrido em 2013. Como especialista no assunto, o que você acha que deveria ter sido feito no local em relação a medidas de prevenção que poderiam ter evitado ou pelo menos amenizado as consequências dessa tragédia?

Marcelo Valle: A gestão de segurança contra incêndio se baseia em alguns pilares fundamentais e o primeiro deles é o monitoramento constante dos riscos. Na boate Kiss há uma série de fatores que foram ignorados, como:

A colocação de espuma sem proteção de material anti-inflamável, que chamamos de ignífuga;

A utilização de material pirotécnico para efeitos especiais sem uma avaliação de risco;

Não ter uma brigada e equipamentos adequados de acordo com essa avaliação de risco;

Não seguir a lotação máxima do local. A boate estava com lotação bem acima da sua capacidade máxima projetada, sendo esse, na minha opinião, um dos principais fatores de morte. Era previsto 691, mas havia mais de mil pessoas, segundo os bombeiros militares do RS.

A forma de fiscalização do poder público e a falta de preparo na resposta a esse tipo de evento. Nas imagens de época, via-se claramente que os bombeiros militares não tinham equipamentos adequados para o combate, bem como não foi adotado nenhum protocolo de gerenciamento de incidentes.

O segundo pilar da gestão de segurança contra incêndio é o monitoramento de disponibilidade dos sistemas de proteção. O sistema de incêndio, embora esteja ativo, não funciona como uma máquina produtiva, ou seja, estamos olhando para ele, mas não sabemos se vai funcionar quando precisarmos. Por isso, uma série de inspeções, testes, manutenções preventivas e preditivas precisam ser feitas para garantir o funcionamento tempestivo e assertivo, e geralmente essas práticas estão em normas internacionais ou recomendações de seguradoras e gerenciadoras de risco, também internacionais. No Brasil, nós ainda engatinhamos nisso, não temos regras de monitoramento e de disponibilidade de sistema.

Na boate Kiss o único equipamento que tinha para o combate a incêndio eram os extintores e eles não funcionaram, porque faltou uma inspeção e manutenção adequada.

O terceiro pilar é a preparação para emergência, que é fazer a avaliação dos cenários possíveis. A boate Kiss não tinha um plano de evacuação adequado, não tinha brigadistas voluntários – pessoas que trabalham em outras atividades, mas que possuem treinamento de prevenção e combate a incêndio – e não tinha bombeiros civis, que são brigadistas profissionais.

Falando em capacitação, a preparação dos brigadistas no Brasil é muito deficiente. Não acredito que um treinamento de 8 ou 16 horas por ano, aplicado uma única vez, seja suficiente para que as pessoas tenham preparo, a “memória muscular” para combater o incêndio. É necessário ter continuidade. Todas as pessoas deveriam ter treinamentos mensais, de alguns minutos, mas constante.

O que nos leva ao quarto e último pilar, o ensino de aprendizagem continuada, que está vinculado à questão do preparo das pessoas. Todo mês você tem que ter um treinamento, uma orientação, mesmo que seja de 15 minutos, como por exemplo ativar um acionador manual, ligar para emergência, utilizar um extintor para combater princípio de incêndio, etc.

Revista Segurança Eletrônica: O que mudou nas regras de segurança e tecnologia desde a tragédia da boate Kiss?

Marcelo Valle: Houve avanços significativos, mas não efetivos. O maior deles foi a publicação da Lei Federal nº 13.425, de 30 de março de 2017, que foi batizada como Lei Kiss. O projeto de lei tinha a finalidade de prever ações para boates, mas acabou ganhando maior abrangência, cobrindo edificações e estabelecimentos com grande reunião de público.

A Lei tem dois efeitos principais, o primeiro é que ela é a 1ª lei nacional de segurança contra incêndio no Brasil. As legislações são regionalizadas, mudam de estado para estado, e essa foi a primeira lei nacional, e o primeiro ponto que ela dá é que atribuiu responsabilidade compartilhada entre município, corpo de bombeiro e proprietários das edificações, reafirmando que todos são responsáveis por incidentes. Com base nesse conceito é que os réus da boate Kiss estão sendo julgados, acusados por dolo eventual, o tipo de homicídio que a pessoa conhece o risco e o assume caso algo aconteça, embora eles aleguem que não sabiam do perigo.

O segundo efeito é que a lei finalmente deu força ao bombeiro militar de regulamentar e fiscalizar, porque ele não tinha essa possibilidade, dependia muito do município para poder fiscalizar, e essa lei deu poder de polícia (de estado) para os bombeiros militares.

Em termos de tecnologia pouco avançamos, infelizmente, a segurança contra incêndio não se antecipa às mudanças tecnológicas. Novos materiais e suas aplicações têm provocado incêndios com comportamentos diferenciados. Os avanços que ocorrem no mundo nem sempre são acompanhados no Brasil, onde existe uma barreira de entrada das novas soluções. Tive a oportunidade de conhecer soluções certificadas na Europa, Rússia, Coreia do Sul, Estados Unidos, que quando chegam aqui, os projetistas as deixam de lado, pelo fato de não serem regulamentadas pelos bombeiros militares.

Na linha de gestão de segurança contra incêndio, considero o Firelab, assim como algumas plataformas tecnológicas, um importante avanço para a prevenção de incêndio. Mas, em termos de tecnologia de combate, entendo que não avançamos. Acredito que o único legado positivo que teve foi a Lei Kiss, que vai ser um grande divisor de águas no país, quanto à imputação de responsabilidade.

Revista Segurança Eletrônica: Qual a importância da segurança contra incêndio em um projeto de segurança?

Marcelo Valle: Eu considero o Brasil bem desenvolvido na área de projetos de segurança contra incêndio, principalmente na parte de engenharia. A ressalva que eu faço é que os projetos deveriam ser baseados em avaliações de risco. Existem vários métodos consagrados, principalmente os europeus, que são tridimensionais, ou seja, avaliam as dimensões de gravidade, vulnerabilidade e exposição a incêndios, para estabelecer as medidas de segurança apropriadas e conceber o projeto.

Em um shopping center, por exemplo, sua classificação é de risco médio de incêndio. Entretanto, dentro do shopping há restaurantes com cozinhas industriais que produzem gordura, que da maneira que impregna nos dutos, na coifa, quando tem um incêndio no local, basicamente não é possível apagar, você não consegue fazer um combate manual. Entretanto, a legislação de incêndio diz que se houver estabelecimentos com riscos diferentes na mesma propriedade e ele representar menos de 10%, o risco predominante prevalece, ou seja, se essas cozinhas industriais representarem menos de 10% da área da ocupação, você não precisa aplicar medidas específicas, mas o incêndio em um restaurante vai produzir fumaça, que vai provocar pânico em uma praça de alimentação e o pânico pode provocar as mortes, mesmo sem ter um grande incêndio.

O grande problema dos projetos não é o projeto em si e sim em que se baseiam. Precisamos abandonar as tabelas e aprendermos a fazer gestão.

Revista Segurança Eletrônica: Como você resolve essa questão da gestão nos projetos de incêndio?

Marcelo Valle: Utilizo o Firelab, uma plataforma da Performancelab que foi projetada para medir, controlar e gerenciar a segurança contra incêndio.

O Firelab tem uma base de avaliação de risco no método europeu. De acordo com as dimensões da edificação, a ferramenta estabelece as medidas de proteção necessárias e nós fazemos uma avaliação para avaliar o nível de segurança, independentemente das regras do Corpo de Bombeiro. Esse é um método já consagrado, criado na Suíça na década de 1960.

Dessa forma, o Firelab foi constituído, tendo como base, seguir todas as regras dos bombeiros militares, se adequando a todos os estados brasileiros. Aplicamos os conceitos de transformação digital, Internet das Coisas, hospedagem em nuvem, para que possamos captar tudo o que acontece no cenário operacional trazido em real time para um painel de controle, com produção de relatórios e gráficos online. A gestão da segurança contra incêndio gera muito papel, muita planilha, não sendo possível ter um controle estatístico sobre isso, que suporte tomadas de decisão, e o Firelab fornece esses dados.

Também utilizamos as recomendações das seguradoras, para a mitigação dos riscos e gestão da disponibilidade dos sistemas de proteção, dessa forma conseguimos identificar e registrar todos os desvios que possam gerar riscos de emissão e propagação de incêndio e todas as ocorrências.

A plataforma permite trabalharmos a famosa Pirâmide de Bird, que hierarquiza os eventos, pela qual conseguimos monitorar quantas ocorrências de baixo nível estão acontecendo, indicando ou não a proximidade de um evento grave; conseguimos balizar perdas versus prevenção. Então, é muito mais do que gerenciar somente extintores e mangueiras. Por exemplo, o cadastro dos equipamentos é feito por meio de compatibilização física com o projeto de incêndio. Depois, estabelecemos o monitoramento através de vistorias, testes e manutenções preventivas, podendo ser de acordo com as leis brasileiras, com as normas internacionais ou com as melhores práticas – cada empresa tem sua cultura –, programamos essa periodicidade pela qual os equipamentos serão vistoriados. O Firelab, ainda, indica se estão disponíveis ou não com base nesses trabalhos. Além disso, há um módulo de gestão eletrônica de documentos de incêndio (GEDi) em que o Firelab permite catalogar todos os documentos, inserir a respectiva data de validade, estabelecer prazos de notificação prévia, entre outros.

Para quem trabalha com bombeiros civis, estamos implantando o módulo inteligente de ronda, em que a plataforma disciplina e informa riscos identificados, sistemas indisponíveis e pendências de vistoria.

Em suma, o Firelab é um software que fornece mais do que a legislação pede. Uma vez implantado, vai automatizar várias funções e otimizar o tempo, funcionando tanto em pequenas edificações, como um prédio residencial ou comercial, com funções mais simplificadas, quanto em um grande complexo, seja ele industrial, logístico, hospitalar ou com vários sites. A plataforma tem ações endereçadas e níveis de usuário, ou seja, é uma ferramenta que vai dar automação no projeto de gestão de forma completa.

Como eu disse, o Brasil precisa aprender a exercitar os conceitos de gestão em segurança contra incêndio, e o Firelab é o maior avanço tecnológico nessa área. Sua criação tem o objetivo maior de poder contribuir para reduzir os números de incêndios, e suas consequências.

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