Como um Estado nos EUA conseguiu criar regras para reconhecimento facial

Legislação de Massachusetts alcançou um equilíbrio na regulação da tecnologia, permitindo às autoridades policiais colher os benefícios da ferramenta e constituindo mecanismos de proteção que poderiam evitar prisões injustas

Apesar de a polícia usar tecnologia de reconhecimento facial há duas décadas para tentar identificar desconhecidos em suas investigações, houve pouco avanço nos últimos anos em legislação e regulação. Agora, porém, o tema tem ganhado destaque e uma nova legislação de Massachusetts, nos Estados Unidos, chamou atenção: ela conseguiu alcançar um equilíbrio na regulação da tecnologia de reconhecimento facial, permitindo às autoridades policiais colher os benefícios da ferramenta e constituindo mecanismos de proteção que poderiam evitar prisões injustas, que já ocorreram anteriormente.

Legisladores, defensores de liberdades civis e chefes de polícia têm debatido maneiras de usar essa tecnologia, e se ela deve ou não ser usada, em razão de preocupações a respeito da privacidade das pessoas e da precisão do mecanismo. Mas decidir como regular esse tema é complicado, e isso resultou em abordagens extremadas. Câmaras municipais em Oakland (Califórnia), Portland (Oregon), Minneapolis (Minnesota) e outros lugares baniram o uso policial dessa tecnologia, em grande parte por causa da parcialidade do seu funcionamento. Estudos realizados nos anos recentes por pesquisadores do MIT e do governo federal descobriram que muitos algoritmos de reconhecimento facial são mais precisos em relação a homens brancos — e menos precisos em relação a pessoas com outras características.

Ao mesmo tempo, o reconhecimento facial automatizado se tornou uma poderosa ferramenta para investigações criminais, ajudando a identificar pedófilos e, em um importante exemplo recente, pessoas que participaram da insurreição no Capitólio, em 6 de janeiro. Autoridades policiais de Vermont querem anular o banimento do uso dessa tecnologia em seu Estado porque “pode haver centenas de crianças precisando de resgate”.

Agora, uma reforma na polícia em Massachusetts, que entrará em vigor a partir de julho, cria novas salvaguardas: policiais terão de obter autorização judicial antes de realizar uma busca de reconhecimento facial, que somente poderá ser realizada por agentes da polícia estadual, do FBI (polícia federal) ou do departamento de trânsito veicular de Massachusetts. Policiais locais não poderão simplesmente baixar um aplicativo de reconhecimento facial e fazer uma busca.

A reforma também cria uma comissão para estudar políticas relacionadas à tecnologia de reconhecimento facial e fazer recomendações, como, por exemplo, se suspeitos de crimes deveriam saber ou não se foram identificados pelo uso da ferramenta.

Esforços

Quando perguntamos aos legisladores estaduais de Massachusetts como eles conseguiram aprovar essa reforma, eles frequentemente apontam para uma pessoa: Kade Crockford, uma ativista da União Americana pelas Liberdades Civis (UALC) de Massachusetts.

“Uma das minhas preocupações é a possibilidade de um dia acordar em um mundo semelhante ao descrito no romance Minority Report, de Philip K. Dick; em que, aonde quer que você vá, seu corpo é rastreado, e seus movimentos físicos, hábitos, atividades e localizações são compilados secretamente e registrados em um banco de dados capaz de realizar buscas, disponível para qualquer um”, afirmou Kade.

Dois anos atrás, em junho de 2019, Kade e a UALC de Massachusetts lançaram uma campanha contra a tecnologia de reconhecimento facial, informando elaboradores de políticas sobre os problemas da tecnologia e investigando, por meio de solicitações de registros públicos, a amplitude com que a ferramenta era usada no Estado. Naquele mês, a cidade de Somerville, próxima a Boston, aprovou a primeira proibição ao uso oficial da tecnologia. Foi a segunda cidade do país a fazer isso, um mês depois de San Francisco.

“Não queremos banir sem pensar qualquer nova tecnologia distópica de vigilância que apareça”, afirmou Ben Ewen-Campen, membro da Câmara Municipal de Somerville. “Queremos uma dinâmica de inclusão, na qual, se a sociedade decidir que quer uma tecnologia, nós possamos obtê-la.”

A UALC fez mais de 400 solicitações de registros públicos para análise a agências governamentais estaduais e federais e descobriu que a polícia usava regularmente a tecnologia de reconhecimento facial para identificar pessoas, normalmente submetendo imagens de suspeitos aos bancos de dados dos registros de motoristas.

Um dos registros que a UALC recebeu foi um memorando de setembro de 2015, enviado por um policial estadual de Massachusetts para todas “as forças de segurança locais, estaduais e federais”, informando o novo endereço de e-mail do departamento de trânsito veicular de seu Estado para realizar buscas de reconhecimento facial. Se você não conhecesse a identidade de alguma pessoa e quisesse saber se o rosto dela correspondia ao de algum motorista de Massachusetts, bastava mandar um e-mail com a foto dela para aquele endereço.

“Não havia nenhuma menção de alguma política, análise legal ou limite legal que os policiais teriam de atender para que essas buscas fossem realizadas”, afirmou Kade.

E-mails de delegacias locais de polícia entregues à UALC também revelaram que, ao longo do ano mais recente, vários policiais criaram contas temporárias para testar gratuitamente o aplicativo Clearview AI, que realiza buscas de reconhecimento facial utilizando bilhões de fotos publicadas na internet.

Até 2020, Boston e outras cinco cidades de Massachusetts baniram o uso oficial da tecnologia de reconhecimento facial. O deputado estadual Dave Rogers, do Partido Democrata, ajudou a dar forma à lei de tecnologia de reconhecimento facial do Estado. Ele afirmou que as iniciativas dos municípios ajudaram a demonstrar a necessidade de medidas de abrangência estadual. “Vimos que as autoridades policiais estavam usando isso de uma maneira completamente irrestrita”, disse ele. “A tecnologia está avançando muito mais rapidamente na nossa sociedade do que a legislação que a regula.”

Um projeto de lei aprovado pela assembleia estadual, controlada pelos democratas, baniu quase completamente o uso oficial da tecnologia de reconhecimento facial, exceto pelo departamento estadual de trânsito veicular, que a utiliza para evitar roubos de identidade. O departamento só pode realizar buscas mediante um mandado judicial (um mandado também é necessário segundo a legislação do Estado de Washington que entrará em vigor em julho).

Mas o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker, ameaçou vetar a medida. “Não vou sancionar uma lei que bane a tecnologia de reconhecimento facial”, afirmou Baker, de acordo com a imprensa local, citando o uso da ferramenta na solução de duas investigações policiais, de homicídio e pedofilia.

Os legisladores e o governador finalmente chegaram a um acordo, na forma de regulações pendentes.

Alguns críticos, incluindo escritórios da UALC em outros Estados, afirmam que a tecnologia de reconhecimento facial é particularmente danosa e deve ser banida. Sindicatos de policiais e o Departamento de Polícia de Boston não responderam a pedidos de comentários. Ryan Walsh, assessor de comunicação social do Departamento de Polícia de Springfield, Massachusetts, indicou que a corporação não considera essa medida a palavra final a respeito de como as forças policiais podem usar essa tecnologia.

“Enquanto atualmente não usamos nem temos planos de usar nenhum software de reconhecimento facial, esperamos que a legislação evolua, ao mesmo tempo que a tecnologia evolui e melhora”, afirmou ele.

Kade, que tem se dedicado a temas relacionados à tecnologia e vigilância desde que entrou na UALC de Massachusetts, em 2009, afirmou que foi “politicamente impossível” banir o uso da tecnologia de reconhecimento facial no Estado. Mas ela acredita que diretrizes adicionais ajudarão a evitar abusos e prisões injustas.

Rogers e a senadora estadual Cynthia Creem apresentaram um novo projeto de lei que coíbe o uso dessa tecnologia em espaços públicos. “Na nossa visão, ainda há muito o que fazer”, afirmou Kade.

Fonte: Estadão

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