Como a China quer usar DNA no reconhecimento facial

O governo chinês está desenvolvendo uma tecnologia de reconhecimento facial que mapeia o rosto de indivíduos a partir do DNA coletado em amostras de sangue.

A tecnologia está em estágios iniciais de desenvolvimento, sendo financiada pelo Ministério de Segurança Pública da China, de acordo com o jornal. O processo também contaria com a presença de pesquisadores ligados a instituições da Europa e dos Estados Unidos.

O projeto remonta ao ano de 2016, quando o Ministério de Segurança Pública da China publicou um anúncio procurando um pesquisador que pudesse estudar como o DNA impacta características físicas de aparência.

De acordo com o New York Times, a tecnologia está sendo testada nos uigures, minoria muçulmana que vive no território autônomo de Xinjiang. O projeto já teria coletado milhões de amostras de sangue.

O jornal afirma que oficiais estão coletando as amostras em centros de detenção que reúnem prisioneiros uigures e em comunidades civis, sob o pretexto de um programa federal de monitoramento de saúde obrigatório. A reportagem tentou apurar na cidade de Tumxuk se houve consentimento dos civis que tiveram amostras coletadas, mas foi impedida pela polícia de entrevistar moradores.

A tecnologia funciona a partir da fenotipagem de DNA, uma série de processos que consegue analisar os genes e identificar características como cor da pele, cor dos olhos e ancestralidade étnica. Em 2015, nos EUA, a fenotipagem de DNA identificou características que indicaram um suspeito de assassinato. O homem posteriormente confessou o crime.

Segundo a reportagem, a fenotipagem de DNA aplicada ao reconhecimento facial está em estágio rudimentar de desenvolvimento, e ainda não conseguiu produzir imagens claras.

Por enquanto, a tecnologia está sendo testada apenas com DNA dos uigures, mas, posteriormente, pode ser estendida para outros grupos da China – o país tem um banco de dados com o DNA de cerca de 80 milhões de indivíduos.

Quem está envolvido no projeto
Parte do projeto é financiado pelo Ministério de Segurança Pública da China, e os experimentos são realizados em laboratórios do próprio órgão. A reportagem do New York Times identificou dois pesquisadores ligados a instituições europeias que teriam participado do desenvolvimento da nova tecnologia.

Tang Kun e Liu Fan são citados como autores de um artigo publicado pela revista científica Hereditas, ligada à Academia Chinesa de Ciências, em 2018, que investiga as características físicas do rosto dos uigures. Eles também aparecem nos créditos de um artigo publicado em abril de 2019, que examina o DNA de 612 amostras de sangue de uigures.

O jornal falou com Tang Kun, um especialista em diversidade genética que trabalhava no Instituto Partner de Biologia Computacional, instituição com sede em Xangai e financiada parcialmente pela Sociedade Max Planck, centro privado de pesquisas com base na Alemanha. Tang afirma que encerrou seus trabalhos com a polícia chinesa em 2017, e que não sabia da existência do projeto.

Tang deixou o Instituto Partner em 2018. Christina Beck, uma porta-voz da Sociedade Max Planck, disse que Tang não declarou que tinha trabalhado em um projeto junto da polícia chinesa e que o Conselho de Ética da instituição vai investigar a questão.

Outro nome identificado como participante, Liu Fan, geneticista e professor assistente na Universidade Erasmus, na Holanda, não quis comentar o assunto com o New York Times. A universidade afirmou que o financiamento para essa pesquisa não veio da instituição e que por isso também não comentaria o caso.

O que está em jogo
A tecnologia, apesar de ainda estar em um estágio rudimentar, desperta preocupações acerca de vigilância massiva, consentimento e administração de dados sensíveis.

Segundo o New York Times, há a possibilidade de que, no longo prazo, a tecnologia se desenvolva ao ponto de poder ser aplicada em sistemas de vigilância em massa, presentes em grandes centros urbanos.

Atualmente, os sistemas de vigilância se baseiam em câmeras, e há formas de confundi-las. Um sistema que se baseia na fenotipagem de DNA tornaria a tarefa muito mais difícil ou impossível.

Em entrevista ao New York Times, Mark Munsterhjelm, professor do departamento de sociologia da Universidade de Windsor, avaliou que o projeto é um esforço do governo chinês para “caçar pessoas”.

Pilar Ossorio, professor de bioética na Universidade de Wisconsin, afirmou que o projeto desperta preocupações. “O que o governo chinês está fazendo deveria ser um alerta a todos que pensam sobre como alguém poderia se preocupar com essas tecnologias”, disse.

O tablóide britânico The Sun categorizou o projeto como sendo mais uma iniciativa do “Grande Irmão Chinês”, em referência ao Grande Irmão, figura que personifica o partido totalitário que controla o Reino Unido e as Américas no romance “1984”, de George Orwell. No livro, o Grande Irmão está sempre observando os cidadãos, monitorando-os incessantemente.

A nebulosidade que envolve o governo chinês não dá pistas de como as informações relativas ao DNA serão protegidas e administradas, e não deixa claro com quem esses dados serão compartilhados. As autoridades envolvidas no projeto não dão detalhes se houve consentimento dos uigures para a coleta do sangue, mas garante que os procedimentos foram feitos seguindo normas internacionais, que também não foram especificadas.

Apesar disso, há também quem encarou o projeto com bons olhos. Ao New York Times, Peter Claes, especialista em mapeamento facial na Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, disse que esse tipo de tecnologia pode ser uma solução para crimes nos quais não são encontrados registros de DNA em bancos de dados.

O conflito da China com os uigures
Os uigures são uma minoria muçulmana que vive no território autônomo de Xinjiang, principal produtor de gás natural da China. A região, que fica no noroeste do país, foi incorporada em 1949, mas muitos residentes mantêm seus dialetos e se identificam como parte do Turquestão Oriental, nome anterior à anexação.

Dos 11 milhões de uigures de Xinjiang, acredita-se que cerca de um milhão deles tenha passado desde 2017 por algum dos mais de 85 campos de detenção identificados por pesquisadores, sem terem sido acusados ou condenados de qualquer crime.

Até agosto de 2018, o governo chinês negava a existência desses locais, mas, após imagens de satélite revelarem construções com torres de vigia e arame farpado, a China reconheceu que se tratavam de “centros de reeducação”, onde os moradores da região iriam voluntariamente, segundo o governo.

A China diz que esses centros foram criados para garantir a segurança nacional após ataques de militantes uigures. As pessoas enviadas são acusadas de “terem sido infectadas por pensamentos não saudáveis”. Para a população, o motivo é a intolerância religiosa. Em 2017, antes dos campos, uma lei de Xinjiang proibiu os homens de ter barba longa e as mulheres de usar véu.

Como funcionam os campos
Em 24 de novembro, um memorando vazado para a imprensa internacional detalhou a rigidez dos campos, que se assemelha à dinâmica de prisões de segurança máxima. “Os alunos devem ter uma cama fixa, posição fixa na fila, assento fixo na sala de aula e posto fixo durante trabalhos manuais — e é estritamente proibido que isso seja alterado.”

Algumas das ordens do memorando incluíam:

Nunca permitir fugas;

• Aumentar a disciplina e punir violações de comportamento;

• Promover arrependimento e confissão;

• Tornar o estudo de mandarim prioridade máxima;

• Encorajar estudantes a se transformarem verdadeiramente;

• Garantir monitoramento constante de vídeo em dormitórios e salas de aula, sem pontos cegos.

Os detidos só poderiam ser liberados quando demonstrassem ter seus comportamentos, crenças e línguas completamente transformados. Pessoas que conseguiram deixar os campos e familiares denunciam maus-tratos pelo governo chinês, incluindo esfolamentos, estupros e injeções que os tornaram inférteis.

O cerco aos uigures já inclui uma sofisticada operação de vigilância que faz uso da tecnologia. O memorando destaca que mais de 40 mil pessoas foram investigadas uma a uma pelas atividades em um aplicativo de compartilhamento chinês chamado Zapya. A ordem era de que o usuário fosse enviado aos campos se as suspeitas de “pensamentos não saudáveis” não fossem descartadas.

Fonte: Nexo

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